FRENESI | 40
anos ao papel : Quarenta anos ao papel,
no sentido em que a busca da redefinição de um gosto, moderno, absolutamente
moderno, se fez no quadro da literatura impressa. Busca levada a cabo pela
publicação de autores de língua portuguesa, ora vivos, ora repescados na matriz
congelada da cultura nacional – estes escolhidos a dedo e com a-propósito
histórico. Mas também busca nalgumas obras mandadas traduzir, sempre que o
momento contemporâneo exigia assinalar um ponto de vista sociopolítico, ou uma
estética não vazia. Ou erguer um pano de fundo para a criação em curso.
Entre 1979 e 2010 a frenesi publicou 140 títulos, não estáticos, nenhum
deles um processo encerrado sobre si mesmo. Fora desse limite temporal, a
qualquer pretexto o que parece adormecido vem à liça, fazendo jus aos quarenta
anos que agora se celebram. Quarenta anos focados no longo discurso de ideias –
na vida das ideias –, e que a vertente exposição veio acordar.
Apraz-me referir que esse ao papel assinala o devido tributo da frenesi
à casa editora & etc, um justo tributo pela aprendizagem do ofício de
publicar livros e pelo apoio colhidos por Paulo da Costa Domingos junto do
mestre Vitor Silva Tavares. Como já se disse noutro sítio, citando Georges
Bernanos: «amei tão excessivamente os mestres da minha juventude que não pude
deixar de ir um pouco além dos seus livros, além do seu pensamento». E assim
surgiu a ideia de publicar autores que, após rejeição por parte de quem tive
sempre por mestre, iriam talvez ficar órfãos de obra dada a conhecer, órfãos
talvez de entrar neste misterioso jogo da comunicação que advém do livro
impresso. Logo à cabeça dois nomes rejeitados na & etc, e que, desde cedo,
se tornaram incontornáveis no entendimento de um novo círculo, sobretudo
literário: os escritores Rui Baião e Al Berto.
Mas outras aventuras só puderam vir a lume no quadro de uma sensibilidade
outra, menos marcada pelas necessidades disciplinares do frentismo antifascista
– mas pouco libertário. A própria História do país acabara de varrer para
debaixo do tapete a validade e a eficácia de procedimentos políticos datáveis,
encontrava-se propício o tempo de arejar as ideias, de experimentar sedições
diversas, de incluir vozes novas, porventura titubeantes, desrazoáveis, e até
falsas.
Neste deserto de almas, uma geração invisível – dístico inaugural que a
editora, sem rebuço, levou em folhas publicitárias às vitrinas das livrarias,
num ínvio protesto a que os primeiros títulos do catálogo vinham conferir
substância. Só, afinal, na frenesi se juntarão os artistas poetas e ilustradores
dos anos 80, fossem eles punk ou pós-modernos, ou somente “Portugal no seu
melhor”, num crescendo insubordinado que culminou na antologia-manifesto Sião,
em 1987, com cinco nomes responsáveis pelo, então, crime de
lesa-clerquismo-poético: Al Berto, Rui Baião, eu próprio, sob o luminoso
prefácio do crítico de artes plásticas Alexandre Melo e sobrecapa do pintor
Pedro Calapez.
E passámos ao patamar das traduções. Se a reedição, em 1995, de Prometeu
Agrilhoado, atribuído a Ésquilo, dava o mote do retorno da resistência a um
mundo adverso, que nem a estulta década anterior fizera esquecer, é a tradução
de Marcas de Baton – Uma História do Século Vinte, de Greil Marcus, em
1999, a pérola teórica para toda uma época prodigiosa. Síntese histórica
transversal invulgar, a leitura só por si do livro de Greil Marcus continua
operativa e desencadeadora de futuros processos criativos.
Também uma segunda leva de obras portuguesas contemporâneas atravessa a década,
destaque para Subsídio, Suicídio, Ostras Geladas, em 1998, cujas ondas
críticas à anónima autoria ainda recentemente vieram morrer à praia da criação
literária.
O novo milénio dará continuidade a todas estas linhas de acção, em que a
diversidade caótica impera, com manifestos que tanto podem agir na poética da
vida quotidiana (Zona Autónoma Temporária, de Hakim Bey) como na
profilaxia da droga (O Livro do Ópio, de Nguyen Te Duc), ou na dragagem
do gosto, principalmente com a reedição de O Surrealismo na Poesia
Portuguesa, organizado por Natália Correia, e Nuez do fotógrafo
Paulo Nozolino junto com o escritor Rui Baião. As obras traduzidas de Duncan
Campbell, O Mundo Sob Escuta – As Capacidades de Intercepção no Século XXI,
e as de investigação de Thierry Meyssan em torno do dúbio ataque aos Estados
Unidos no 11 de Setembro, acabarão por ter sido o último posto avançado de uma
separação radical entre aquilo que a frenesi defende como raciocínio do
Mundo e as mundanas mentiras correntes.
Assim se chega a uma fase, no catálogo, que tem feito as delícias de gente mais
sóbria, mais dada à cultura de biblioteca clássica. Coube à reedição da Descrição
da Cidade de Lisboa, de Damião de Góis, inaugurar um rol que pretendeu, e
conseguiu, acordar do sono dessas mesmas bibliotecas autores como Agostinho
Rebelo da Costa, Júlio César Machado, Rafael Bordalo Pinheiro, Cândido de
Figueiredo, Venceslau de Morais, o cavaleiro De Oliveira, António Serrão de
Crasto, Manuel Bento de Sousa, ou o escritor de acção directa António de
Albuquerque.
No capítulo da tradução de clássicos visando uma moral e uma ética sem par,
apenas dois nomes: Baltasar Gracián y Morales, com as obras O Herói e O
Discreto, e Cornelius Agrippa, com Da Nobreza e da Excelência do Sexo
Feminino, e Sua Preeminência Sobre o Outro Sexo, edição ostensivamente
ignorada pelas interessadas.
A
casa editora frenesi foi criada segundo o princípio ancestral do
convívio entre oficiais do mesmo ofício; no caso vertente: o ofício da mudança
de mentalidade. Poetas, artistas plásticos, tradutores, e até uma cantora
lírica – a frenesi não configurou, pois, um serviço público destinado à
maior ou menor circulação carreirista de escriturários ou de envasilhadores de
conteúdos. Neste espírito, granjeou uma juventude de 31 anos de magia, acompanhando
os monstros engendrados por uma geração invisível. Também nunca se assumiu como
editora “marginal”, conceito arcaico e erróneo, reputação que outros, crentes
que o fruto dito proibido é aquele que vende melhor, utilizarão como emblema
comercial.
Quando a primeira crise financeira da editora sobreveio, em 2001, com a
falência de uma distribuidora que deixou cinquenta editores perdidos no
mercado, sobreveio coincidentemente o emudecimento de possíveis apoios perante
a desgraça que farejava às portas da frenesi. Apelos meus, na altura,
caíram em saco roto... não se conseguindo até hoje apurar se o silêncio é de
oiro, ou se, simplesmente, sai mais barato. Situação financeira depreciativa
que veio a repetir-se de novo, com idênticos protagonistas e pelos mesmos
motivos de falência alheia ou roubo perpetrado pelos intermediários, em 2009...
E está-se em 2010, ano em que o editor, ou por vicissitude ou tragédia
empresarial, decidiu dar a frenesi, naqueles moldes, por encerrada com a
publicação de um desdobrável em nome próprio, assertivamente titulado O
Homem Quase Novo. Não sem deixar para trás, numa folha de preçário da
colecção destinada às livrarias, a claríssima declaração de princípio para a
actividade a que, daí em diante, iria entregar-se: o alfarrabismo, sucessor
natural, este, do seu labor de homem de livros:
«Após [...] décadas ao papel, apostámos na reciclagem. O alfarrabismo é isso
mesmo: evitar que o planeta se torne num mar de lixo impresso. Nada melhor para
filtrar aquilo que realmente presta.
Como sempre foi nosso intuito levar a boa nova literária a quem se esforça por
aprender nos livros, juntámos, pois, a difusão de livros usados raros,
esgotados ou antigos ao nosso anterior objectivo. [...] [Porque] [...] é cada
vez mais nos livros velhos que devemos buscar as verdades novas.»
Não lastimo nada, nunca lastimei, e posso vangloriar-me de nunca ter dado por
perdido o meu tempo; e cada coisa em seu tempo e lugar. Tudo quanto passou
passou-se no fugaz instante, que é a vida dos homens e das mulheres no
Universo, valeu a verdade desse risco no firmamento, e norteou-se pela
constância de ser uma afronta ao grande ludíbrio imperante.
Paulo da Costa Domingos