SUN DE WU
trad. e posf. Jorge Pereirinha Pires
Lisboa, 2019
viúva frenesi
1.ª edição (5.ª tiragem)
19 cm x 13 cm
56 págs.
acabamento com dois pontos em arame
exemplar novo
tiragem de 250 exemplares
9,00 eur (IVA e portes
incluídos)
Posfácio do tradutor Jorge Pereirinha Pires:
Apesar de a obra ser
há muito reconhecida, a oriente e a ocidente, como um dos tratados militares
clássicos, nem sempre sucedeu o mesmo com Sun de Wu. Foram vários os académicos
que, ao longo dos anos, puseram mesmo em questão a própria existência do autor
enquanto figura histórica.
No entanto, os
primeiros anais da história da China, que foram terminados no ano 91 a.C.,
identificam-no como tendo de facto nascido em Wu, no estado de Chi (actual
província de Shantung) e sendo contemporâneo de Confúcio no final do Período da
Primavera e do Outono (722-481 a.C.), com o qual se iniciou a chamada dinastia
Zhou oriental. Nessa época, no que é o actual território chinês, coexistiam uma
multiplicidade de estados semiautónomos, que durante alguns séculos se
guerrearam de forma constante e foram assim constrangidos a sofisticarem o seu
pensamento, actuação e métodos militares, face ao permanente dilema de
triunfarem ou perecerem.
Tal como fizeram os
sofistas da Grécia clássica, diversos filósofos, pensadores e professores
itineravam entre os diversos estados, vendendo os seus serviços e conselhos.
Sun de Wu (544-496 a.C.), que ficou conhecido para a posteridade com o título
honorífico de Sun Tzu, ou «Mestre Sun», distinguiu-se como comandante e
estratego militar ao serviço do rei Ho-lu de Wu (514-496 a.C.), a ele se
devendo sucessos como o da campanha contra o estado de Chu – nesta, observando
os conselhos de Sun, o rei de Wu conseguiu conquistar a capital do seu rival em
meros seis anos.
O texto de A Arte
da Guerra só deverá porém ter sido fixado após a morte do autor,
provavelmente já durante o Período das Guerras Entre os Estados, quando de arte
de cavalheiros a guerra passou a assunto para profissionais – fazendo crescer
exponencialmente o número dos mercenários e o dos mortos nos campos de batalha.
Este período concluiu-se em 221 a.C, quando o estado de Chin dominou o último
dos seus rivais, reclamando para o seu soberano o título de Shi Huangdi
– «Primeiro Imperador» – e dando a conhecer o território pelo nome que ainda
hoje conserva: China, ou terra dos Chins.
Em suma, e na melhor
das hipóteses, estaremos pois diante de um relato em segunda mão sobre aquilo
que Sun de Wu teria realmente a dizer acerca da guerra. O facto de, ao longo
deste tratado, ele ser sempre referido como «Mestre Sun» parece indicar que o
texto haja sido compilado e fixado por terceiros, pessoas que o tinham em alta
estima, como normalmente sucede entre os discípulos. Um manual feito pelos seus
alunos? Não exactamente – existem razões para supor que o percurso da obra seja
bem mais sinuoso.
Por exemplo, o tratado
de Sun de Wu teve de sobreviver à Queima dos Livros, decreto promulgado pela
corte Chin em 213 a.C., ordenando que toda a literatura representativa das
diversas escolas filosóficas – e muito especialmente a literatura confuciana –
fosse recolhida pelos administradores regionais e lançada à fogueira. Teve
também de sobreviver às vicissitudes da transmissão oral – note-se que em vários
trechos (e pese embora a rima ausente) a rítmica do texto parece adequada a uma
mnemónica. E, em terceiro lugar, não podemos esquecer que o texto terá sido
copiado, recopiado, organizado e reeditado por diversas gerações de estudantes.
Foi apesar destes e
outros obstáculos que chegaram até nós os treze capítulos tão referenciados nas
literaturas do oriente e do ocidente. Até há pouco tempo, o texto canónico era
uma edição datada da dinastia Sung (960-1279) que serviu de base para todas as
traduções entretanto efectuadas – sendo a edição de referência uma versão inglesa
bilingue publicada em 1910 por Lionel Giles, conservador adjunto do Museu
Britânico.
Mas quando, após a
Revolução Cultural, a China retomou as prospecções arqueológicas, foi
descoberto em 1972, em Yin Chue Shan, na actual província de Shantung, um
exemplar da obra de Sun que, para além dos treze capítulos clássicos (aliás
acrescentados em cerca de 2.700 caracteres), continha ainda fragmentos de cinco
outros entretanto perdidos. Tendo sido encontrada entre diversos artefactos
funerários datados de entre 140 e 118 a.C., esta versão será pois cerca de mil
anos mais antiga do que aquela que até aqui se conhecia. Estes e muitos outros
textos recuperados em Yin Chue Shan só começaram a chegar ao conhecimento dos
estudiosos ocidentais quando as instituições arqueológicas chinesas retomaram a
publicação periódica dos seus boletins. Dada a morosidade das operações
necessárias à catalogação e decifração das numerosas tiras de bambu, o primeiro
relatório mencionando a descoberta de A Arte da Guerra apenas foi
publicado em 1974, tendo sofrido diversas actualizações posteriores, a última
das quais em 1985.
Finalmente, em 1993
foram publicadas duas novas traduções para a língua inglesa que incorporam
essas descobertas recentes. Na transposição para português, acompanhámos
preferencialmente a de Roger T. Ames, também pela visão compreensiva que
propõe: efectivamente, revela-se fútil investigar o sentido deste texto sem
entender o contexto que o originou, e um período histórico em que, para serem
bem sucedidas, as campanhas militares exigiam a utilização de todos os recursos
disponíveis – incluindo os recursos filosóficos. Como escreve Ames, «a guerra,
na medida em que seja filosófica, é uma filosofia aplicada». Para
compreendermos os seus mecanismos, passemos pois em breve revista o universo em
que ela opera.
Na cosmogonia chinesa,
a ideia de ordem é imanente ao mundo e às coisas, e não algo ou alguém que veio
triunfar sobre o caos primordial. E, tal como a ideia de ordem, as ideias de
Bem, de Belo ou de Verdade – digamos, as essências da filosofia ocidental – não
são entendidas como modelos imutáveis ou formas apriorísticas da razão, mas
antes como produções (culturais, portanto), que estão eternamente sujeitas a
renovações e actualizações. Porque o mundo é um campo de energia (chi)
que se dispõe em várias concentrações e configurações, segundo os diferentes
pontos de vista e as circunstâncias por eles determinadas. E é a configuração
sempre alterada destas condições específicas que determina o nosso lugar em
qualquer ponto do tempo, e nos atribui assim uma disposição e uma «forma».
O tao – a «via»
– é aquilo que a cada momento se torna discernível e que torna transitoriamente
coerente o lugar e o seu contexto. É o padrão de continuidades que nos conduz
de um acontecimento a outros. «Conhecer» é portanto um acto performativo: é ser
capaz de determinar e manipular as condições que afectem, em qualquer prazo, a
configuração do nosso lugar. E o objectivo da existência humana consiste em
coordenar os elementos que, neste ponto do tempo e do espaço, constituem o
nosso mundo particular, gerando a partir deles a harmonia mais produtiva
possível – aquela que possa maximizar as diferenças, e portanto as
configurações. Como se vê, trata-se de uma função predominantemente estética, e
centrípeta, uma vez que irradia de nós para o mundo.
Por isso, para os
contemporâneos de Sun, uma pessoa de carácter superior, alguém com a capacidade
de estabelecer a «harmonia», de identificar a «via», era alguém que revelaria
essa qualidade em qualquer posição ou função social, incluindo portanto a de
comandante militar. Porque aquele que detém a «via» cultiva o shih, ou
«vantagem estratégica»: sabe antecipar o padrão de alteração das condições que
definem a sua situação, e manipulá-lo para sua própria vantagem.
Eis porque a sua
primeira prioridade é sempre a de evitar a guerra a todo o custo. Caso
contrário, há que garantir a integridade das nossas forças; mover o inimigo, e
não ser movido por ele; e actuar onde a vitória é certa. Sem esquecer que toda
a vitória militar é sempre uma derrota. O luminoso Yang equilibra o sombrio
Yin.