quarta-feira, julho 15, 2020

A Céu Aberto



PAULO DA COSTA DOMINGOS
ilust. Pedro Calapez
paginação binária de PCD

Lisboa, 2017
Averno
1.ª edição
178 mm x 130 mm
112 págs.
exemplar novo
14,00 eur (IVA e portes incluídos)

Um dos poemas:

A  MONTANTE

Quando o rio está por perto
ou nos rodeia em golfadas
batidas nos rochedos e a vertigem
ou o enjoo nos atira a cabeça
para as nuvens, nossos dedos
contaminados de melodia
tacteiam a superfície branca
do papel que aguarda
um certeiro lance de boa tinta.

A chuva veio picar o dorso
do estuário lacrimejando visões
plúmbeas enquanto o pintor
mói sílabas no seu almofariz
para o poeta que lhe estic’a tela
e ambos, embora náufragos da ideia,
aprontam um navio que é somente
desejo, desamparo e teimosia
em siar a quimérica corrente.

Foi preciso chegar ao lugar de partida
cujos remadores são só esqueletos
devorados pela descida à mina de lava
onde retinem telefones que explodem
dentro dos ventres das impúberes
disponíveis a troco dalguma fantasia
ou do salto para a meia-idade
abruptamente prometido, foi preciso
isso para amar o caminho.

Olhamos o horizonte como a um celeiro
exangue e desvalido que uma barca funerária
atravessa distribuindo suas cartas de sortes
sob latidos, e uma vez e outra vez
o furor da vaga doida no molhe
lembra-nos a pequenez do orgulho
no nosso cântico de deslumbramento,
nosso pobre e frágil sentido trágico
no epicentro da planetária tragédia.

Não sabemos se do ópio se daquilo
que nos insinuam na comida
apontando o féretro no ascensor
ficámos cegos aos rebentos novos
cada qual com sua conclusão
acerca de nada, que parece tudo,
e apesar da atrevida oitava na voz
o desconforto da mentira circundante
arruína a alegria das nossas vidas.

Também trazemos o pouco dinheiro
sem queixas, acenos ou tormento,
porque com algum cabedal se paga
o lugar e o tempo neste mundo
e a jornada heróic’a espalhar sementes
nas cabeças secas improdutivas,
sabe-se lá com que dificuldade...
¡ou susto!, trazemo-lo por trocado
e por grosso na forma de suor.

Por vezes são os bocejos que estão
na ordem-do-dia como um campo,
um respirável campo de papoilas
sem ídolos nem chefes, e aí
a obscenidade chama-se Morte e
chamamo-la para dentro da infância
no esticar a tela, no mooooeeer
as sílabas atirando a cabeça
para as nuvens, rendidos.

Os latidos do nosso pisteiro
cavam o contraponto na montanha,
uma água que escorre estimula
o ritmo (embora a multidão
apenas deslize como pastosa lama
de parco desígnio, nenhuma paixão
ou alma) e o nosso pouco é então
enorme, do tamanho do ser mas
com asas e temos por fim um nome.

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