segunda-feira, outubro 02, 2023

Memórias de um Ex-Morfinómano


REYNALDO FERREIRA (REPÓRTER X)

Porto, 1933
Edição Maranus / Foto-Moderna J. Monteiro
1.ª edição
vol. I (único publicado, o seu conteúdo surgirá postumamente apenas na edição de 1956)
185 mm x 133 mm
216 págs.
subtítulo: Reportagem vívida nos mistérios dos alcalóides
encadernação inteira em imitação de pele gravada a ouro na lombada
não aparado, sem capas de brochura
exemplar estimado; miolo limpo
40,00 eur (IVA e portes incluídos)

«Suponho que a sua formação ideológica se situava entre um republicanismo radical e o anarco-sindicalismo, o que o levava a comportar-se como franco-atirador.» – Assim o enquadra um seu colega, o jornalista António Valdemar… e trata-se, obviamente, de elogio, atendendo a que a época era então a do nefasto Estado Novo em rota ascendente.
Reinaldo Ferreira, vulgo Repórter X, nascido em 1897, deve ser o caso modelar português de consumpção toxicómana com registo escrito. A morfina, enfraquecendo-lhe as defesas, o levará, por via de uma bronco-pneumonia, a 4 de Outubro de 1935. Não sem, entre os milhares de páginas jornalísticas de sua autoria, nos ter legado estas luminosas Memórias, cujo testemunho da maior dor humana se mistura com o retrato citadino de uma Lisboa nocturna, lúgubre, subterrânea. É a cidade entre duas guerras lá longe, apanhada simultaneamente no falso luxo dos bares dançantes e nas valetas das ruas traseiras, nos átrios iluminados e na penumbra dos cubículos de vão de escada…
«Aos vinte anos é considerado o primeiro repórter português, título que jamais ninguém lhe arrebatará, na vida como na morte!» – escreve Artur Portela no prefácio à edição de 1956. – «Vale dez jornalistas, uma redacção inteira a trabalhar! Sozinho, em mangas de camisa, a gaforina despenteada, com o eterno morrão do cigarro ao canto da boca, do qual nem sequer esparge a cinza porque não perde um segundo, no delírio de escrever – ele tanto faz, de ponta a ponta, um diário de quatro páginas como uma revista de trinta e duas, enchendo-os dos temas mais palpitantes e das imagens mais vibrantes! […]
Um dia, Reinaldo Ferreira aluga o fato esfarrapado, coberto de vérmina, de um pobre, encosta-se a uma esquina do Chiado e, com uns óculos negros de cego, estende a mão à caridade pública.
Ninguém o reconhece. Passam por ele os grandes senhores da fortuna, os ventres dourados da burguesia, os seus camaradas egoístas e distraídos. Há os que lhe dão uma esmola, os que a negam, os que o insultam. Resiste a tudo, como um actor num palco improvisado sofre as vaias dos espectadores.
Um deles é Joshua Benoliel, o melhor fotógrafo desse tempo, bastante avaro, que lhe nega o óbolo, por mais lamúrias que o falso pedinte debite numa voz caracteristicamente rouca e arrastada.
No dia seguinte, a sua crónica flagrante, caricatural, satírica, em que perpassam com os nomes dezenas de figuras conhecidas, faz rir Lisboa inteira!»
É este apenas um curto episódio das suas incomensurável ousadia e boa disposição. A viagem à Rússia dos sovietes, em 1925, com fotografia encenada e tornada pública, de parentes e amigos colunáveis a despedirem-se do jornalista no cais de embarque – que de lá, desse país remoto e mítico, “envia” vinte e cinco artigos para o magazine ABC –, é logro a que nenhum funcionário dos jornais se atreveria hoje, nem como exemplo de coragem criativa, nem de crítica mordaz à “objectividade” da informação.

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